Fragmentos do tempo

“O mundo é o seu caderno, as páginas em que você faz suas somas” (Richard Bach)

Já se vão, por aí, algumas décadas. E também muitos restos de tempo e solidão. Tempo que sustentava o viver e solidão que amparava as reflexões da juventude.

Em Patamuté, aldeia e sustentáculo de todos os meus sonhos, tudo era muito rudimentar. Os jovens espelhavam-se nos mais velhos, porque estes lhes serviam de modelo de vida.

A experiência dos pais balizava nosso caminhar. Era difícil lutar, mesmo que a luta fosse possível, necessária, exigível.

As elites tendem a estruturar o viver de seus filhos, dando-lhes estudos, formas saudáveis de vida e horizontes profissionais seguros. Mas em Patamuté, não havia elite e todos os jovens da época viviam no mesmo pé de igualdade, excetuados os poucos casos em que, mediante sacrifício, algumas famílias mandavam seus filhos para estudar fora.

O estímulo mais eficiente para o crescimento interior é a travessia das dificuldades. Assim como a memória guarda as lembranças das atrocidades, também retém a lembrança do nascer dos sonhos e da luta com vistas ao soerguimento do sofrimento, o livrar dos tropeços.

Registro aqui uma quadra da vida em que muitas de minhas amizades, que perduram até hoje, nasceram lá nesse ambiente de construção de sonhos, de idealismo e de perspectivas incertas.

Naquele tempo construí as primeiras amizades, muitas delas reluto, até hoje, em perdê-las. São amigos que perduram, ultrapassaram décadas porque se firmaram na sinceridade. E quando é assim, difícil acabar.

Sempre me perguntam quais são meus amigos, se ainda existem nalgum ponto do coração ou se diluíram no tempo e nos lugares por onde passei e morei, que são muitos, vários.

Em alguns desses lugares permanecem amigos ainda firmes. Em Patamuté, inclusive. Esses ficaram, não obstante o tempo passado. Coisas da juventude. Difícil de explicar. O terreno da juventude é propício para a pureza do coração.

Todavia, muitos amigos surgiram bem depois, quando eu não vivia mais lá e não mais encontrava acentuadas dificuldades na vida. E os grandes amigos são aqueles que aparecem nos momentos mais difíceis. Como dizia Walter Winchell, “amigo é aquele que chega quando as outras pessoas estão indo embora”.

Minha formação de vida deu-se numa atmosfera de muitos percalços. Tropecei algumas vezes. Caí, outras tantas. Mas levantei-me. E toda vez que me encontro na encruzilhada do tempo passado e presente, lembro as amizades adquiridas ao longo do caminho. E faço um balanço: valeu a pena tê-las. Vale a pena tê-las.

Lembro uma amiga, Cremilda Gomes de Sá, que me apareceu nessa quadra da vida em Patamuté. Já professora naquela ocasião, amiga indecifrável, porque não há definições completas para pessoas modestas, generosas, inexplicáveis. Assim, Cremilda.

Cremilda é assim e supera qualquer figura que o pensamento possa inventar. Aprendi, com ela, o gosto pela leitura, a curiosidade pelos livros, a fazer os questionamentos que a vida requer e a cutucar as incertezas do dia a dia.

Cremilda é mestra nas coisas da vida, sábia, generosa, fidelíssima. Sabe seguir adiante, sempre, sabe antever horizontes, sabe brigar com as incertezas do cotidiano.

As calçadas de Patamuté, quase sempre vazias, serviam para segurar nossos devaneios de jovens em busca de uma nova estrada para o mundo. Lá discutíamos sobre as injustiças e a ausência de tudo. E nesse tudo incluía-se a falta de perspectivas que nosso olhar utópico tanto insistia em alcançá-las.

Hoje Cremilda e eu convivemos com outros fantasmas, dentre esses a constante tentativa de entendermos os caminhos percorridos. Em alguns deles tivemos que afastar as pedras para que a passagem fosse possível.

Mas fizemos nossas somas, cuidamos do nosso caderno, construímos nosso mundo, juntamos os pedações do possível.

araujo-costa@uol.com.br

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