O acaso, um amigo, um encontro

“O homem é um ser entre o nada e o túmulo” (Pedro Gomes de Camargo, padre português).

A cidade grande tem suas coincidências e permite encontros casuais, às vezes dilacerantes, outra vezes difíceis de explicar.

Em São Bernardo do Campo, cidade encravada no chamado ABC paulista, há uma avenida com o nome de Senador Vergueiro, grande e movimentada, que serpenteia do centro da cidade até as proximidades das divisas com Santo André e São Caetano do Sul, cidades também bonitas e acolhedoras.

Tenho um amigo, já octogenário, que não via há anos, por uma série de razões, dentre elas um grande defeito que carrego: sou sobremaneira relapso e desatencioso com os amigos, embora eles entendam, exatamente por serem amigos. E só por isto.

Um dia, na correria de São Paulo, encontrei-o frágil, amparado por uma bengala, olhar humilde e expressão inocente, caminhando com dificuldade por aquela avenida enorme, seca, barulhenta, poluída, perigosa.

Ali mesmo na calçada, conversamos por alguns razoáveis minutos. Eu às voltas com o tempo curto e compromissos agendados e ele, emocionado com o encontro, parecia um tanto desconexo para enfrentar os imperativos e asperezas da cidade grande, que tanto conhece.

Fiz-lhe algumas perguntas protocolares, como é praxe nesses encontros casuais: por onde tinha andado, o que fazia, família, et cetera. Expressão humilde, ele disse, cheio de reticências:

– “Veja. Eu me perdi. Tem uma rua ali…aquela onde moro….você sabe…diabo, pareço velho”. E apontava para um lado e para outro, braço levantado, gestos largos, raciocínio confuso, memória esburacada, a bengala a denunciar seu estado de fragilidade.

Fiquei preocupado. O tempo e o relógio cruéis me atrapalhando, confrontando-me com o dever de ser-lhe útil e solidário naquele momento. A lembrança fulminante do passado me cutucou. E saímos conversando amenidades, afastando a ferrugem da memória e até rindo do seu estado de senectude.

Deixei-o nas proximidades de sua casa e me despedi mais frágil do que ele, refletindo sobre sua situação de desamparo diante da certeza da velhice. Desamparo que só o desamparado sabe avaliar.

Chorar nesses momentos é muito fácil. Minha fortaleza e arrogância se desmoronaram ali, vendo-o incapaz de determinar-se por si mesmo. Como um amigo é fundamental nesses momentos!

Foi muito difícil ver o seu estado de fragilidade, a lucidez falhando, os passos trôpegos, a visão titubeante diante de um ponto imaginário.

Depois do adeus angustiado, fui relembrando nossa amizade, nossas conversas de décadas atrás, a alegria dos encontros, o bate-papo desinteressado, livre, descompromissado, o violão que ele tanto sabia tocar.

Meu amigo está frágil e diminuído.  Isto me deixa certo de que a vida é a medida exata de nossas fraquezas. E me veio à lembrança a frase do padre português Pedro Gomes de Camargo nos funerais do também padre Diogo Antonio Feijó: “O homem é um ser entre o nada e o túmulo”.

 araujo-costa@uol.com.br

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