O sorriso também deixa cicatrizes

Comumente as cicatrizes são vistas através do lado mais cruel, o sofrimento. Contudo, elas são marcas deixadas ao longo do tempo e, como tais, também podem resultar de alguma face do caminhar que não seja somente sinais de tristeza.

As nódoas que se agarram ao nosso viver quase sempre decorrem de tropeços, perturbações que a vida nos permitiu experimentar, mas o passado também teve alegrias, sorrisos, flores no jardim.

A preparação para o envelhecimento pressupõe que caminhemos devagar com as tristezas, sem esquecer as alegrias do passado e, sobretudo, com a altivez do presente.

Somos possíveis hoje e isto nos basta.

As escolhas irreversíveis, o amoldar da consciência, as amizades, as dores e as descobertas fizeram parte da construção de nossos mistérios.

Lágrimas e risos emolduraram o viver até aqui.   

Passamos o tempo conjecturando formas de viver. Isto faz parte dos sonhos, da ambição de enxergar mais longe.

A efemeridade da vida encurta o tempo, corrói as forças e torna mais distante o ápice que pretendemos alcançar. Entanto, seguimos. E a razão maior do caminhar é a esperança.  

Até o amor que sentimos às vezes parece fraquejar. “Gasta-se o ferro com o uso, quanto mais o amor”, dizia o padre Vieira. Mas é preciso força, disposição para a luta, mesmo que ela nos pareça inglória.

Caminhar, sempre.

Tenho um amigo, já octogenário, que não via há anos, por uma série de razões, dentre elas um dos meus defeitos: sou relapso e desatencioso com os amigos, embora eles me entendam assim, exatamente por serem amigos.

Na correria de São Paulo, encontrei-o frágil, amparado por uma bengala, olhar humilde e expressão inocente, caminhando com dificuldade por uma avenida enorme, seca, barulhenta, entre passantes indiferentes.

Eu às voltas com a exiguidade do tempo e compromissos de agenda e ele, emocionado com o encontro, parecia um tanto desconexo, talvez pela aspereza da cidade grande, os tropeços da vida, a poeira que não conseguiu sacudir.

Fiz-lhe algumas perguntas como é praxe nesses encontros casuais.

Humilde e reticente, disse: “Rapaz, me perdi, tem uma rua ali, aquela onde moro, você sabe, diabo, pareço velho”. E apontava para um lado e para outro, braços levantados, gestos largos, raciocínio confuso, memória esburacada.

Fiquei preocupado.

O relógio me atrapalhando, confrontando-me com a necessidade de ser-lhe útil, solidário, a lembrança do passado e de nossa amizade a me cutucar.

Deixei-o nas imediações de sua casa e despedi-me mais frágil que ele, refletindo sobre sua situação de desamparo diante da certeza da velhice. Chorar nesses momentos é muito fácil. Minha fortaleza e arrogância se desmoronaram naquele momento.

Depois, angustiado, fui relembrando nossas conversas de décadas atrás, a alegria dos encontros, o bate-papo desinteressado, as músicas que ouvíamos em tempo de serestas.

Meu amigo está fragilizado, diminuído, carente diante da vida. Confessou-me lhe terem escapado as esperanças.

Observei seu olhar vazio, semblante maltratado pelo tempo e pelo sofrimento.

Mas ele já sorriu muito. Sou testemunha. E o sorriso também deixa cicatrizes boas, inolvidáveis cicatrizes.

São Bernardo do Campo, outono de 2019.                                             

araujo-costa@uol.com.br      

                                

                           

                             

                                   

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