Mãe, saudade de sempre

Costumo escrever sobre pessoas que me foram caras até aqui, ao longo de minha existência.

Não é lá muito tempo de vida, mas já se vão alguns anos de tropeços e quedas ao longo do caminhar. Deu para registrar algumas lembranças.

No mister de cronista, escrevo sobre amigos, conhecidos, circunstantes, pessoas que estiveram ao meu redor ou comigo conviveram nos lugares por onde passei, que foram diversos, muitos.

Admirei umas e guardo outras tantas no livro da consideração. De quando em vez leio páginas desse livro e fecho com saudoso cuidado. Tenho receio de esquecer os momentos que se não podem apagar.

Contudo, nunca escrevi ostensivamente sobre D. Sátira Araújo Costa, uma senhora nascida em 12.01.1914 e falecida em 22.11.2008. Como se vê, aos 94 anos. Morreu lúcida, atenta ao pequeno mundo – ou ao grande mundo – que ela construiu, durante quase um século, com sabedoria exemplar adquirida na universidade da vida.

Sátira nasceu e viveu na caatinga do município baiano de Curaçá. Contemporânea da fase barulhenta do cangaço, contava muitos fatos que presenciou ou deles teve conhecimento.

Tinha uma memória prodigiosa e impressionante interesse pelas coisas do conhecimento. Sabia fazer amigos, sabia conservá-los, sabia elevá-los ao indizível dos meandros da amizade.

Viveu as agruras de um tempo difícil. Sem nenhum conforto, trabalhava de sol a sol para cuidar da família. Criou seis filhos com dificuldade, enfrentando o cabo da enxada para plantar o sustento, carregando feixes espinhentos de lenha na cabeça e água em potes de barro, equilibrando-os sobre a cabeça, em rodilhas acomodadas para amenizar o incômodo do peso.

Seu maior companheiro foi o sofrimento. Sua maior tarefa foi driblar o turbilhonar das dificuldades.

Sátira cavou cacimbas com suas mãos calejadas. A água difícil de encontrar no solo estorricado amenizava o seu sofrimento, dos filhos e dos animais.

Os animais fazem parte do lidar do caatingueiro. Ele se desespera ao vê-los sofrer por falta de comida e água pra beber. É doído ver uma vida definhar, desamparada, por lhe faltar comida e água.

Sátira enfrentou e resistiu bravamente muitas secas. Anos seguidos sem chuva, como é comum no Nordeste. Conviveu com árvores ressequidas e desfolhadas, terra quente, pedras disformes difíceis de pisar.

Enfrentou os espinhos e a poeira quente das entradas da caatinga, muitas vezes com os pés descalços, porque lhe faltava condições de comprar uma alpercata para amenizar a dor da vida.

O fardo da pobreza é muito grande, pesado demais para carregar. Somente quem conviveu com ela tem condições de explicar ou tentar explicar.  “A pobreza tem cara de herege”, diziam os antigos. E tem.

Sátira nasceu e viveu em casa de taipa, erguida toscamente entre cactos, no sertão da Bahia. Lá edificou seu viver estribado mais na certeza das constantes dificuldades do que na esperança de dias melhores que nunca vieram.

Lá cuidou dos filhos e não teve tempo de cuidar de si própria.

Sátira derramou muitas lágrimas diante do sofrimento, desesperançada por não antever uma luz que lhe iluminasse a vida e lhe desse claridade para desanuviar a estrada do tempo.

Muitas lágrimas que ela não se permitiu derramar as levou para o túmulo. Certamente foram muitas.

Ela tinha muita fé. Talvez a fé lhe tenha sustentado durante toda a vida, dando-lhe condições de enfrentar os percalços.

Sátira merece um monumento de amor. Não consegui erguê-lo para que ela mesma o inaugurasse.

Hoje meu coração apertou. Saudade de D. Sátira. Ela era minha mãe.

araujo-costa@uol.com.br

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