Memórias dispersas da ditadura

A ditadura militar corria solta no Brasil.

O jornalista José Carlos Oliveira, famoso, boêmio e conhecidíssimo no meio da imprensa e fora dela, assíduo frequentador dos famosos bares cariocas Degrau e Antonio’s, além de outros de Copacabana, Ipanema, Leblon e et cetera, foi abordado abruptamente por policiais, na Zona Sul do Rio, alta madrugada.

Arrogante o policial ordenou:

– Mãos ao alto, documentos!

Muito calmo e seguro de seu conhecido estado etílico, Carlinhos sentenciou:

– Ignoro. Não tenho documentos.

O policial, mais arrogante, sentiu-se grande:

– Então você não existe!

Gozador e ciente da fama, Carlinhos foi didático:

– Existo, sim. Sou público e notório.

Em Santo André, A do ABC paulista (Santo André, São Bernardo do Campo e São Caetano do Sul), governo do general Ernesto Geisel, tempo de ditadura mais amena, de “distensão lenta, gradual e segura”, final de tarde, fui abordado na Rua General Glicério, miolo da efervescência política naqueles tempos difíceis.

Em meio ao burburinho de estudantes, a caminho da escola, depois de estafante dia de trabalho numa fábrica de Mauá, eu e outros colegas fomos cercados por policiais truculentos, grossos, idiotas, pequenos, imbecis.

Fomos encaminhados para o 1º Distrito Policial, para averiguações, deixar de ser besta e aprender a falar com a polícia da ditadura.

O primeiro Distrito Policial de Santo André, ainda está lá, no mesmo prédio, soturno, esquisito, histórico. Já na condição de advogado, no regime democrático, fui lá outras vezes, defender interesses de clientes.

Eu sobraçava um exemplar da Folha de S.Paulo, além da marmita vazia, guarda-chuva e outros penduricalhos de estudante pobre.

O policial me olhou grosseiramente:

– O que tem aí, algum livro comunista?

Besta e inocente, respondi:

– Um jornal, não sabe o que é um jornal?

Já eu lhe mostro o que é um jornal – disse o policial ofendido – e me encaminhou para o camburão da polícia política do governador Paulo Egydio Martins, da Aliança Renovadora Nacional (ARENA).

Tempo do temido DOPS (Departamento de Ordem Polícia e Social), DOI-CODI e outras armadilhas de tortura da ditadura. Todo mundo tinha medo de cair lá, inclusive inofensivos estudantes como eu.

Naquele tempo andar com livros chegava a ser perigoso. Se alguém fosse flagrado com um exemplar de O Capital, de Karl Marx, certamente seria levado para a delegacia.

No distrito policial de Santo André, fomos averiguados, perguntados, apalpados, espiados, humilhados e liberados.

Hoje, quando vejo pessoas desinformadas, adultas ou jovens, pedindo a volta da ditadura, acresce-me a certeza de que essas pessoas não conhecem o mínimo sobre o Brasil e, ainda assim, se dizem patriotas e nacionalistas.

Ditadura é o pior dos governos. Alíás, nem governo é. É barbárie.

Na ditadura, ser público e notório não basta. Chega a ser perigoso.

araujo-costa@uol.com.br

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