Tantas vezes a história me foi contada e tantas outras me recusei a acreditar. Mas me rendi à insistência do amigo em repeti-la e quase lhe dei a certeza de que não seria mais um a negar-lhe credibilidade aos seus devaneios de outrora.
Dizia ele que saiu da metrópole – e cansado da cidade grande – foi trabalhar no interior. Escolheu cidade pacata, silenciosa, moradores hospitaleiros, amigos sinceros ou parecidos como tais, difíceis de encontrar nos dias de hoje.
Um dia, lá para as tantas, voltando para casa, resolveu entrar no último boteco do caminho. Alguns gatos pingados já embriagados conversavam em volta do balcão. Conversa comprida, sem começo, sem rumo certo, sem hora pra acabar.
Tropeços, abraços, sorrisos, o aliviar da rotina e do cansaço do dia.
Cumprimentos de praxe, porque assim mandam as boas regras, pediu uma birita para lhe dar coragem de abandonar a noite e recolher-se aos seus aposentos, aliviar o cansaço do dia.
Conversa vai, que conversa de boêmio – ou de bêbado – é comprida pra danar, os circunstantes avisaram que tivesse cuidado ao andar durante a noite, porque a rua ali era mal assombrada, veem vultos, fantasmas, almas do outro mundo, sombras. Não se sabe bem o que é, muitos já viram e coisa e tal.
O cemitério da cidade ficava ali nas imediações, talvez seja por isso, há testemunhos, histórias, um rosário de lengalenga. Conversa do interior, sem maldade, boa demais de se ouvir, nem sempre de acreditar.
Despediu-se de todos, saiu cauteloso, desconfiado, rumou na direção pretendida. Não demorou muito, um senhor elegantemente vestido, que seguia no mesmo sentido, fez-lhe companhia por alguns minutos, declinou-lhe o nome, falou da cidade, de fatos acontecidos, de tempos idos.
Conversaram bastante naquele momento de caminhada. Conversa amena, interiorana, decente, aprumada.
Ao se separarem, cada um pro seu lado, porque assim mandava o destino de cada um, o aperto de mão natural, aproximativo, o ensaio de um abraço.
Apresentaram-se, saíram amigos, supostamente amigos.
Continuou a luta na cidade, a vida, a boemia. Passou a gostar do horário, do caminho que fazia todas as noites, dos amigos que conheceu. Fez muitas vezes o mesmo percurso, a mesma rotina, passou no mesmo botequim, o mesmo senhor elegante a acompanhar-lhe, por algum tempo, em animado bate papo. O mesmo adeus, o mesmo salamaleque, os mesmos respeitos.
Permaneceu algum tempo na cidade e, antes de deixá-la, foi se despedir daquela turma alegre e hospitaleira que conheceu no boteco, amigos de copo e até, em certos casos, de infortúnio. Lamentou que ali também não estivesse o senhor elegante, conversa interessante, desembaraçada, que lhe fazia costumeira companhia noturna ao voltar para casa.
Entristecido, citou o nome do companheiro ausente, para surpresa de todos, que ficaram assustados. Unânimes disseram que aquele senhor havia falecido há muito tempo e tinha sido um influente e generoso comerciante da cidade que costumava sair à noite para ajudar os necessitados que perambulavam pelas calçadas em estado de mendicância.
Ele jurava que era verdade e eu jurava que não acreditava. Mas procurava entender. Não era mais boêmio. Há algum tempo a velhice lhe havia batido à porta trazendo alguns problemas de saúde ou de doença e também alguns fantasmas das noites de boemia.
Talvez estivesse amargando o reflexo de seus dias de inquietude. Era órfão da boemia.
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