“O amanhã pode ser o instante seguinte” (Ignácio de Loyola Brandão)
Em dia de reflexão, retirei de Navegação de Cabotagem o sábio e conhecido texto de Jorge Amado. Ei-lo:
“Possuo um cemitério meu, pessoal, eu o construí e inaugurei há alguns anos quando a vida me amadureceu o sentimento.
Nele enterro aqueles que matei, ou seja, aqueles que para mim deixaram de existir, morreram; os que um dia tiveram minha estima e a perderam.
Quando um tipo vai além de todas as medidas e de fato me ofende, já com ele não me aborreço, não fico enojado ou furioso, não brigo, não corto relações, não lhe nego o cumprimento. Enterro-o na vala comum de meu cemitério – nele não existem jazigos de família, túmulos individuais, os mortos jazem em cova rasa, na promiscuidade da salaflarice, do mau-caráter. Para mim, o fulano morreu, foi enterrado, faça o que faça já não pode me magoar.
Raros enterros – ainda bem! – de um pérfido, de um perjuro, de um desleal, de alguém que faltou à amizade, traiu o amor, foi por demais interesseiro, falso, hipócrita, arrogante – a impostura e a presunção me ofendem fácil.
No pequeno e feio cemitério, sem flores, sem lágrimas, sem um pingo de saudade, apodrecem uns tantos sujeitos, umas poucas mulheres, uns e outros varri da memória, retirei da vida.
Encontro na rua um desses fantasmas, paro a conversar, escuto, correspondo às frases, às saudações, aos elogios, aceito o abraço, o beijo fraterno de Judas.
Sigo adiante, o tipo pensa que mais uma vez me enganou, mal sabe ele que está morto e enterrado” (Jorge Amado, in Navegação de Cabotagem)
Então, “o amanhã pode ser o instante seguinte”, apesar das turbulências do agora.
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