Quando o vi pela primeira vez achei que aquele senhor tinha cara, jeito e habilidade de orador. Não errei.
Prudente, circunspecto, contrito, palavras bem colocadas em qualquer contexto e vocabulário impecável, escorreito, admirável.
Conheci-o, casualmente, numa casa comercial. Estava analisando preços, entre gôndolas, comparando-os com outros minuciosamente anotados num papel amassado entre dedos esguios.
Cumprimentou-me de maneira cortês. Foi gentil, educado, atencioso. Ali mesmo puxou uma conversa longa, segura, moderada, solidamente amparada em argumentos. Um papo agradável, didático, educativo.
O tempo passou. Somaram-se anos. Surgiram décadas.
As reflexões tornaram-se-me frequentes, a humildade passou a espreitar minha altivez e insolência de jovem.
Encontrei-o duas décadas depois nas exéquias de um conhecido.
Em cidades grandes as coincidências e os acasos também acontecem.
Enterros de políticos e intelectuais costumam ter discursos. Naquele teve. Antes de o ataúde descer à sepultura, levantou o braço, dedo espetado no ar:
– Um momento. Vou pronunciar algumas poucas palavras.
Era amigo do falecido. Falou durante alguns minutos, discorreu sobre a vida do finado, apontou virtudes, relembrou caminhos percorridos, vitórias, soerguimentos, láureas, qualidades de pai, amigo, chefe de família e por aí foi, decidido, até chegar à peroração muito bonita, não obstante a feiura do momento.
As perdas são sempre feias.
Discurso em enterro é inusual, mas como disse, existe em alguns. E por não ser usual, deixa um quê de perenidade.
Os discursos em enterros deixam marcas, renitentes lembranças, uma sensação de desamparo para quem fica e ouve.
Aquele momento me fez lembrar uma quadra distante de minha vida, porque lembranças de ocasiões tristes costumam voltar para cutucar nossos sentimentos e nos fazem engolir soluços e lágrimas.
Em 21 de março de 1982 pronunciei algumas palavras à beira de um túmulo no cemitério central de Petrolina, em Pernambuco.
Era o enterro de Claudemira Maria Teles do Nascimento, pessoa muito presente e querida em minha vida. Está em meu livro Fragmentos do Cotidiano (São Paulo, 1987).
Nascida em Riacho Seco, nos rincões de meu querido município de Curaçá, Claudemira morava em Petrolina e faleceu jovem, ainda no despertar para a aurora da vida.
Esse é um momento difícil, dilacerante. Parece que a fraqueza e miséria humanas desabam sobre a pequenez de nosso ser, deixando-o reduzido ao nada.
O vazio da despedida é inominável, inexplicavelmente cruel, terrivelmente solitário.
Sempre achei muito difícil falar em ocasiões tristes. A emoção supera o raciocínio, tolhe o razoável, bloqueia a serenidade. Deixa o orador desamparado diante do infortúnio, coloca-o em desvantagem perante sua própria miséria.
Hoje, já na envelhescência, evito fazer discursos.
Naquele dia, em Petrolina, eu dizia que eterno não é somente o infinito, o que refoge à nossa inteligência e imaginação. Eterno é também o amor, enquanto essencialidade do viver que construímos.
Contudo, é preciso saber a medida certa do humano. E a medida exata do humano é a finitude, o fim de nossas arrogâncias, o descambar de todas as expectativas, o dizimar da esperança.
Há momentos que fico com o filósofo Nietzsche:
“Então, era isto a vida?”
Pois bem: repita-se!”
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