Crônica entre aspas e o juiz corrupto

O juiz tinha fama de “osso duro de roer”.

“Não bebe, não fuma, não joga. E não aceita nenhum cumprimento. Já quis processar um advogado que lhe ofereceu um charuto”.

“Inabordável e incorruptível, o meritíssimo era uma parada!”

Um trambiqueiro empreiteiro tinha inquérito que tramitava na vara daquele juiz e procurou saber mais sobre o magistrado, antes de qualquer coisa.

Alguém lhe informou: “Dizem que ele coleciona lápis”.

O empreiteiro “soube ainda que o meritíssimo, entre um processo e outro que levava para examinar em casa, ficava a se distrair de noite com a sua coleção de lápis, comparando-os, alinhando-os em cima da mesa como um menino a brincar com soldadinhos de chumbo”.

O empreiteiro pôs-se a procurar lápis entre especialistas, adquiriu “uma variada coleção, de fazer inveja aos aficionados do gênero”.

No dia aprazado, o empreiteiro “meteu sua coleção de lápis numa pasta 007 e saiu com ela para a audiência que solicitara ao inexpugnável juiz”.

– Vossa Excelência sabe, eu tenho aí esse processo e queria fazer a Vossa Excelência algumas ponderações.

Do alto de sua incontrastável autoridade de magistrado, Sua Excelência mal se dignou de ouvi-lo:

– O senhor se dirija ao juízo na forma da lei.

– É que há no processo alguns aspectos a considerar.

– Só considero o que for de justiça.

– Eu sei, mas gostaria que Vossa Excelência considerasse a possibilidade de arquivamento.

Enquanto falava, seus dedos brincavam com o fecho da pasta repousada sobre os joelhos. Num movimento disfarçado, fez com que a tampa se abrisse e os lápis rolaram estrepitosamente pelo chão.

– Que é isso? – O juiz se ergueu sobressaltado.

– Vossa Excelência queira desculpar. É uma coleção de lápis que um velho tio me deixou de herança.

Não sei o que fazer com ela, estou pensando em dar para algum orfanato ou escola pública. Só servem mesmo para meninos pobres.

– Meninos pobres? – E a essa altura o juiz já estava de quatro, catando lápis pela sala e até debaixo da mesa, examinando com olhos ávidos um e outro – Mas são lápis raros! Olha só este aqui.

O dono dos lápis o ajudava, também de quatro:

– Se Vossa Excelência quiser, fique com eles, por favor.

E acrescentou, como quem não quer nada, ao estender-lhe a pasta com os lápis já recolhidos:

– Quer dizer que Vossa Excelência acha que o processo deve ser arquivado.

– Sem dúvida. Na forma da lei.

No mesmo dia o juiz despachou a petição e protocolou a sentença mandando arquivar o processo. A lápis”.

(Fernando Sabino, “Sentença a lápis”, in A volta por cima, Editora Record, 1990).

Qualquer semelhança com algum juiz que o leitor conheça ou ouviu falar é mera coincidência.

Por exemplo, o ex-juiz Sérgio Moro, que abandonou a magistratura e ainda não explicou porque exigiu do presidente Bolsonaro uma pensão vitalícia para a família, como condição para assumir o Ministério da Justiça. Ele confessou isto diante da televisão. Está gravado.

Não existe na legislação brasileira nenhum amparo legal que autorize uma pessoa exigir, como condição para assumir cargo público, pensão vitalícia para sua família.  

Como bem dizia Fernando Sabino, autor do texto citado, “nem tudo que acontece é verdade. Nem tudo que se imagina é invenção”.

Post scriptum:

Este escrevinhador esclarece que o texto do escritor Fernando Sabino foi parcialmente transcrito aqui. O conteúdo integral está no livro A volta por cima.  

araujo-costa@uol.com.br

Deixe um comentário