“Negociata é todo bom negócio para o qual não fomos convidados” (Apparecido Torely, Barão de Itararé, 1895-1971)
Primeiro, foram os promotores de São Paulo, do alto de suas intocabilidades, reivindicaram que fossem vacinados contra o covid-19 antes de toda a população de São Paulo, um privilégio escandaloso e inaceitável.
A imprensa descobriu a ilegalidade e eles recuaram, não foram adiante. Não fosse isto, teriam formalizado o privilégio junto às autoridades de saúde, com o beneplácito do governador-pavão João Dória .
Risível a justificativa dos promotores: eles trabalham em contato com o público. Esqueceram de dizer que a população em geral tem contato com o público e não somente Suas Excelências.
Na mesma linha, dias depois, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) endereçou ofício à Fundação Osvaldo Cruz (Fiocruz) sinalizando que seus intocabilíssimos ministros e servidores do tribunal deveriam ser os primeiros a ser vacinados, também contra o covid-19.
A séria Fiocruz negou o pedido, obviamente.
Pior, muito pior: semana passada, o Supremo Tribunal Federal (STF), que é o guardião da Constituição, também endereçou ofício à Fiocruz solicitando que disponibilize 7.000 doses de vacina contra o covid-19 para seus supremos ministros e servidores do tribunal.
Servidores aqui compreendem: terceirizados do tribunal, funcionários, cônjuges, filhos, netos, bisnetos, tataranetos, pais, mães, avós, bisavós, todos que fazem parte do ambiente familiar do STF. Os verdadeiros privilegiados, uma média de 636 pessoas para cada dos 11 intocáveis e elitistas ministros..
Nos dois casos, a Fiocruz negou os pedidos sob o sensato e inquestionável argumento de que as vacinas, quando estiverem prontas, serão entregues ao Ministério da Saúde, de modo que a fundação não tem autonomia para assegurar tais privilégios a Suas Excelências.
O presidente do STF, em entrevista à televisão, sem nenhum constrangimento, tentou justificar a desfaçatez, dizendo que o tribunal teve a “preocupação ética” de ponderar que o pedido seria “dentro das possibilidades”.
“Preocupação ética” teria ocorrido se o STF não tivesse pedido as doses de vacina e pretendido furar a fila num claro desrespeito ao mandamento constitucional.
É o famoso “sabe com quem está falando?”, também conhecido como “carteirada”. A elite desavergonhada se acha no direito de pisotear o direito dos demais brasileiros, mormente da classe pobre.
Em última análise, ao tentar justificar o injustificável, o presidente do STF demonstrou não acreditar na inteligência dos brasileiros. Zombou de nossa capacidade de entendimento. Bastava dizer: o STF pretendia transgredir a Constituição Federal e pronto.
O que assusta nisso tudo é o fato de promotores e ministros dos tribunais superiores, que têm o dever de cumprir a lei e dar o exemplo, desrespeitem acintosamente a Constituição Federal, que diz em seu artigo 5º: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza…”
Essas autoridades precisam aprender a ler a Constituição da República, os compêndios de gramática e os dicionários, para entenderem a expressão ínsita na Constituição, que diz cristalinamente: todos são iguais, sem distinção de qualquer natureza.
A impressão que fica é que a Constituição Federal e o ordenamento jurídico nacional, como um todo, devem ser cumpridos somente por nós mortais comuns e não por Suas Excelências os privilegiados.
Por outro lado, o governador de São Paulo mandou fechar o estado e determinou que sua equipe desse a notícia ruim, segundo a qual o laboratório chinês não aprovou, por enquanto, o índice de eficácia da vacina Coronavac produzida pelo Instituto Butantan. Deixou o desgaste político para o vice-governador.
João Dória mandou os paulistas ficarem em casa, pegou o avião e foi curtir férias em Miami, na Flórida, com a esposa.
O governador não esperava que aliados políticos, adversários e as redes sociais em geral o detonassem pelo gesto irresponsável: no momento em que aumentam assustadoramente os casos e as mortes por covid-19 em São Paulo, ele virou as costas à população e foi passear, como se vivesse nos melhores dos mundos. Magnata, pouco importa o sofrimento dos outros.
Mas o resultado não saiu de acordo com o figurino do governador. Calhou que o vice adoeceu e ele teve de voltar às pressas para reassumir o Palácio dos Bandeirantes.
Só retornou antes do previsto, em razão dessa circunstância inesperada.
João Dória inventou uma desculpa esfarrapada ao regressar, que não convenceu nem a ele próprio. Disse que foi participar de duas conferências nos Estados Unidos e aproveitou para descansar 10 dias.
Lorota. Embromação. Falta de sinceridade.
O jornalista Alexandre Garcia, conferencista renomado, disse que não é comum a realização de conferências no período entre o Natal e Ano Novo, as chamadas festas de fim de ano, mais improvável agora, em tempo de pandemia que, inclusive, castiga os Estados Unidos.
Pífio, vergonhoso e insustentável o argumento do governador.
Ficou feio, como tudo que faz o governador-pavão de São Paulo.
O embuste do governador não colou e ele teve que absorver o desgaste. Mais que depressa, gravou um vídeo pedindo desculpas à população, como se o pedido de desculpas reparasse o erro.
O estrago político está feito, não há conserto.
Se nossas autoridades tivessem vergonha, o Brasil seria diferente e estaria noutro patamar de civilidade.
É uma elite escabrosa e defensora das negociatas disfarçadas com manto legal, desde que o povo seja excluído.
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