O mistério faz parte da construção dos mitos ou, no mínimo, dá-lhes razões para crescerem à sombra das idiossincrasias nem sempre explicáveis.
Assim, João Gilberto Prado Pereira de Oliveira (1931-2019), ou simplesmente João Gilberto, um desses mitos construídos a partir de Juazeiro, sua cidade natal.
João Gilberto abeberou-se na cultura de Barro Vermelho, sertão de Curaçá, onde o pai Joviniano Domingos mantinha raízes culturais e nos encantos ribeirinhos do Rio São Francisco. De lá saiu para o mundo.
Esculpiu um temperamento difícil, solitário, avesso a badalações.
A fama o protegeu das vulgaridades e não lhe permitiu o apego aos holofotes. Fez o caminho inverso daquele seguido pelas celebridades ligadas à música.
Muito já se escreveu sobre suas manias e esquisitices. São muitas, inumeráveis, algumas delas fazem parte do mito, viraram lendas.
O experiente jornalista Ricardo Noblat conta uma. Entrevista previamente marcada, o repórter ligou o gravador, para começar a conversa. João Gilberto pergunta: “Vai ligar o gravador? Olhe, não ligue não. Eu mudo muito de ideia. As coisas mudam muito, a música, os lugares…”.
Agora, a cantora Joyce, conta outra no livro Aquelas Coisas Todas.
Joyce chegou ao apartamento de João Gilberto, em Nova York e o anfitrião pediu sanduíches. Ao abrir as embalagens, Joyce notou que faltava um garfo. João resolveu a situação: “Pode pegar na lata de lixo, meu lixo só tem coisa boa”.
Juazeiro, Rua Góes Calmon. Há alguns anos, eu conversava amenidades na calçada da Sociedade Apolo Juazeirense, uma das instituições tradicionais de Juazeiro. Do alto de minha ignorância, não sei se ainda existe e se o endereço continua o mesmo.
O assunto resvalou para João Gilberto.
Lá para as tantas, meu interlocutor ponderou que João Gilberto não visitava Juazeiro porque tinha vergonha dos alagadiços e esgotos da cidade. Maldade. João Gilberto adorava Juazeiro e dizem que até visitava a cidade humildemente, sem estardalhaço.
Já naquele tempo – década de 1970 – os prefeitos Joca de Souza Oliveira e Américo Tanuri prometiam resolver o problema dos pântanos e esgotos a céu aberto existentes em Juazeiro e João Gilberto nunca teve nada com isto. Os administradores subsequentes devem ter resolvido o problema. Certamente resolveram e aquela nódoa deve ter sido extirpada da cidade.
Talvez os esgotos nem fizessem mais parte de suas lembranças da infância vivida por lá na década de 1940. Mas Juazeiro gosta muito dele. É uma honra para o lugar. O Centro de Cultura João Gilberto está aí para atestar o amor de seu povo pelo filho ilustre.
João Gilberto mantinha uma vida misteriosa. Vivia em reclusão voluntária.
Vizinhos de seu apartamento carioca no Leblon sempre disseram que nunca o viram e que não atendia a porta.
Sabe-se que trabalhava à noite e dormia durante o dia, normalmente até às 17:00 h. Pedia as refeições por telefone e os entregadores nunca ultrapassaram a soleira da porta. Não recebia visitas, exceto familiares e um restrito número de profissionais ligados ao seu trabalho.
Perfeccionista, misterioso, detalhista, dedicava-se solitariamente à música.
Como todo mito, ninguém o via, ninguém o tocava, ninguém o conhecia de perto. Sua grandeza residia na humildade.
João Gilberto deixou a vida e seus mistérios em 2019.
araujo-costa@uol.com.br