Crônica desconexa

Walter Araújo Costa/arquivo pessoal

“Talvez a velhice seja um naufrágio” (Milton Hatoum, escritor amazonense)

Quando a ditadura militar corria solta, estudantes, escritores, jornalistas e um sem número de antagonistas do statu quo mantinham seus redutos de boemia, muitos dos quais ficaram famosos. Como dizia Carlos Heitor Cony, intelectuais reunidos incomodam muito.

Refiro-me, por óbvio, aos anos de chumbo, propriamente: governos Costa e Silva, Garrastazu Médici e parte do governo Geisel.

A ditadura, embora una, indivisível, teve períodos mais escabrosos que outros.  

O temido Serviço Nacional de Informações (SNI) se infiltrava até em botequins e lá auscultava se havia ou não a presença de subversivos.

Lá, nesses redutos, se discutia e falava-se mal do governo, das pessoas do governo, dos amigos do governo e de todo mundo que não comungasse as mesmas ideias sustentadas naqueles ambientes.

De tanto beberem cerveja, a direita os apelidou de “esquerda diurética”.

Essa esquerda – ou o que sobrou dela – quando vislumbrou o poder no governo de Fernando Henrique Cardoso e, mais adiante, nos governos Lula da Silva e Dilma Rousseff, passou a ser chamada de “esquerda caviar”, pelas razões que todos conhecem. É a esquerda deslumbrada e elitista que adora lambuzar-se no dinheiro público.

Quando fora do poder, a esquerda critica as mordomias, os exageros das mordomias. Quando chega lá, incorpora-as, acintosamente, ao seu cotidiano de glamour.  Os exemplos pululam.

Mas esta é outra história e só faz parte desta crônica porque muitos dos meus amigos daquela época, que também contestavam, já morreram. Sobraram poucos, alguns, que estão por aí cavando a persistência da vida, tropeçando no caminho do tempo, ainda com força de sacudir a poeira.

A velhice chega, mas os sonhos não vão embora. Ela se vem anunciando como uma brisa agradável e depois se vai abancando como uma tempestade. Em muitos casos chega a ser um naufrágio.

Com frequência, chegam notícias de amigos que se foram, alguns inesperadamente, porque não estavam doentes.

Um amigo, dentre os poucos que me restam, gozador e espirituoso, me disse:

– Não se impressione. Sua vez vai chegar. Não tenha pressa.

Disse-lhe que não tenho pressa de cair nos braços da finitude.

De qualquer modo, embeveço-me de lembranças e vou dando seguidos pontapés nas notícias ruins, que são muitas e chegam aos borbotões.

Prefiro dar espaço às lembranças dos redutos boêmios contestatórios, quando nossos sonhos eram utópicos, ingenuamente utópicos.  

É uma forma de achar que ainda irei longe, mesmo que seja duvidosa.

Como diz o Prefácio dos mortos, aos que a certeza da morte entristece, a promessa da imortalidade consola.

A vida é mudada, não é tirada.  

Termino com a incoerência desta crônica, a rigor, desconexa.

araujo-costa@uol.com.br

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