“Não há esperança de sobrevivência humana sem homens dispostos a dizer o que acontece” (Hannah Arendt, filósofa judia, 1906-1975)
Constrangedor. Muito constrangedor.
É provável que nem Janete Clair, com sua inteligência criativa, teria construído esse enredo novelesco tão ilógico, absurdo e surreal do Ministério da Saúde. Nem seu marido Dias Gomes, autor de O Bem Amado.
Servidores do Ministério da Saúde se reuniram com um cabo da Polícia Militar de Minas Gerais, que se dizia representante de uma empresa americana atravessadora para, segundo eles, negociarem a aquisição de 20 milhões de doses da vacina Covaxin, produzida na Índia, ao preço unitário inicial de 3,50 dólares americanos.
Esse preço aumentou misteriosamente, durante a negociação, para 15,50 dólares americanos.
A suspeita negociação estendeu-se para 400 milhões de doses de vacina, desta vez da AstraZenica e, em consequência, os pilantras aumentaram o valor e outras coisas mais.
Custo total da tramoia: R$ 1,6 bilhão. O empenho da verba foi feito, o que significa dizer que o Ministério da Saúde reservou o crédito orçamentário para pagamento das vacinas.
O militar mineiro disse que, embora tivesse negociado a venda de vacinas, não dispunha sequer de uma dose para entregar ao Brasil, o que é compreensível, tendo em vista a natureza do trambique.
Experiência do cabo da PM de Minas, intermediário na negociação da venda de vacinas: vendedor de salsichas.
Porte da empresa americana que o militar dizia representar: 3 empregados.
O que o cabo da polícia de Minas entende de vacina: nada, absolutamente nada.
De salsichas, talvez entenda alguma coisa.
O trapaceiro diretor do Ministério da Saúde, que negociou o inegociável, já demitido, cobrou 1 dólar americano de propina por dose da vacina, segundo o próprio atravessador referido, o que representaria R$ 200 milhões de propina.
Os vigaristas caíram na malha da CPI da pandemia no Senado Federal. Ouvidos, mudaram o nome de propina para comissionamento. Coisa de malandro, trambiqueiro, enganador.
O negócio acabou não acontecendo. Por sorte do Brasil ou por azar dos trambiqueiros.
Na sequência, servidores graduados do Ministério da Saúde se reuniram também com intermediadores de uma empresa de Santa Catarina, com o intuito de negociar a aquisição de 30 milhões de doses da vacina chinesa Coronavac ao preço de 28 dólares americanos por unidade.
A contradição mais clara é que o governo já havia anunciado tratativas com a China, sem intermediários, para aquisição de 100 milhões de doses, ao custo de 10 dólares americanos, por unidade.
Mais: a China havia informado o governo do Brasil que não tem intermediário e que a vacina é vendida diretamente ao governo e somente o Instituto Butantan, de São Paulo, tem credencial para tratar diretamente do imunizante.
Mais: o chefe da volumosa negociação das vacinas com o Ministério da Saúde vive financeiramente na penúria.
Cadastrou-se no auxílio emergencial do governo e recebeu todas as parcelas.
Ser pobre não é pecado, não é defeito, nem crime, nem razão de crítica.
Todavia, uma pessoa assim, nessas condições – valendo-se de auxílio emergencial para sobreviver – tem envergadura financeira para viajar aos Estados Unidos, Brasília, Índia e tantos outros lugares, para viabilizar o sonhado negócio bilionário?
Nada disto soou estranho ao Ministério da Saúde?
Onde estão os órgãos de inteligência do governo?
Aliás, o Ministério da Saúde está cheio de criaturas estranhas, muito estranhas.
Eduardo Pazuello, experiente e roliço general de três estrelas, que ocupa o ápice da carreira de intendente, à época ministro da Saúde, não conseguiu captar o trambique que seus subordinados estavam tramando contra os brasileiros?
O general Pazuello é o primeiro general barrigudo que vi, embora já tenha visto muitos generais na vida.
Ou a história está mal contada – e parece estar mesmo – ou o general Pazuello não tinha a mínima condição de, sequer, ser office boy do Ministério da Saúde.
Aliás, office boy é uma profissão respeitável, que exige competência.
Neste caso – parece – mais respeitável que de ministro da Saúde em tempos de governo Bolsonaro.
Com um Ministério da Saúde assim, além dos milhares que já se foram, todos nós começamos a morrer.
araujo-costa@uol.com.br