Demerêncio, a revista e o prefeito de Curaçá

Demerêncio é um desmerecido, humilde e esquecido morador da caatinga de Curaçá.

O telefone tocou logo cedo, como de costume. Demerêncio gosta de reclamar e foi logo reclamando.

– Nunca mais vou procurar o prefeito de Curaçá.

Este escrevinhador quis saber as razões de tão radical decisão e ele foi explicando, um tanto chateado:

– Toda vez que vou à Prefeitura procurar o prefeito ele nunca está e um funcionário informa que o “prefeito foi a um enterro”. Se eu continuar indo lá e o prefeito continuar indo “a um enterro”, ele vai enterrar muita gente e eu não quero isto.

Demerêncio reclamou que a última vez que a Prefeitura mandou uma máquina limpar sua pequena barragem foi no governo de Carlinhos Brandão, que lhe deu muita atenção por intermédio de José Valberto Matos Leite, que não procurei saber se à época era ou não vereador.

Portanto, faz muito tempo, exatamente porque Demerêncio não consegue ter acesso ao prefeito ou ao secretário da área que cuida do assunto, se é que tem secretário da área que cuida do assunto ou outra pessoa que se digne dar atenção ao Demerêncio.

Tento argumentar. Todo prefeito é assim mesmo. Bons para uns (sempre para os amigos) e ruim para outros (geralmente para o restante da população).

Procuro amenizar a decepção de Demerêncio e perguntei:

Já falou com o vereador que você apoiou?

– Imagine, disse Demerêncio. Na campanha, quando candidato, ele apareceu lá em casa, jogou uns quais-quais na orelha de minha mulher, ela acreditou e acabou votando nele e eu também. Depois de eleito o sujeito nunca mais apareceu no meu terreiro.  

Agora leio que uma revista de circulação nacional aponta a administração do prefeito de Curaçá como sendo uma das melhores do município, da região e, quiçá, do Brasil, “referência em gestão política”.

Feito extraordinário! É difícil se vê prefeito tão bom assim, em qualquer tempo.

De início, pensei se tratar de uma montagem ou matéria paga, gozação da oposição ou coisa que o valha.

Vasculho as redes sociais e a matéria está lá, estampada, comentada, elogiada, inclusive na página do prefeito.

Descarto a hipótese de matéria paga. O prefeito não faria isto, não tem verba publicitária para isto, o município não tem dinheiro para fazer isto.

Há outras prioridades. Não é o momento para vaidades.

Diante disto, pensei. Agora vou desmascarar o Demerêncio. Onde já se viu falar mal do prefeito de Curaçá?

Homem tão eficiente, tão competente, tão atencioso, que atende todo mundo que lhe procura na Prefeitura, tão bom administrador!

Desta vez, a iniciativa da ligação foi minha.

– Tá vendo aí, Demerêncio? Você reclama de barriga cheia. O prefeito de Curaçá é o melhor. E fui enumerando os feitos do alcaide-mor de meu altaneiro Curaçá.

– A estrada de Barro Vermelho a Patamuté está um brinco, assim como as demais estradas que ligam a sede aos povoados, distritos e fazendas;

– Não há lixo acumulado, nem espalhado, nas ruas de Curaçá;

– Não há esgotos a céu aberto na sede do município;

– Todas as ruas da sede, incluindo os bairros, estão calçadas e recapeadas;

– A situação do lixão de Curaçá está resolvida e não se fala mais nisto;

– As aguadas dos pequenos sitiantes e agricultores são desassoreadas com frequência e regularmente;

–  O prefeito recebe e atende, sem distinção, qualquer munícipe que o procura na Prefeitura;   

E citei uma infinidade de feitos estrondosos da Prefeitura e do prefeito. Coisas de fazer inveja a qualquer município desenvolvido. Está aí o recorte da revista para não deixar dúvida.

Notei que Demerêncio silenciou e, de repente, passou a repetir a mesma pergunta a cada citação e argumento que eu fazia. Ele perguntava:

– É mesmo, rapaz?  

Eu continuava citando os feitos do prefeito de Curaçá e ele repetia a pergunta:

– É mesmo, rapaz?

No fim da conversa, impacientou-se com minha defesa do prefeito e sapecou:

– Vai gozar de outro!

Bem feito para mim. Quem manda acreditar em tudo.

araujo-costa@uol.com.br

Post scriptum:

O nome do munícipe foi substituído ficcionalmente por Demerêncio, por questões óbvias.

Deixe um comentário