
Curaçá é um município encravado no sertão da Bahia.
A sede, constituída de casas baixas, debruça-se à margem direita do São Francisco e ostenta uma beleza encantadora, por conta das paisagens e tradições nascidas em torno do rio, sua história e sua gente. Terra de marujos e ribeirinhos espirituosos.
Cidade antiga e admirada por seus filhos, aos quais me incluo, Curaçá traduz um clima cultural que seus antepassados foram sedimentando e perenizando ao longo dos anos.
Curaçá inspira, traduz paz, ternura, alegria.
O crepúsculo em Curaçá é encantador.
Como toda cidade que se preza, Curaçá também teve seus boêmios, como os tem até hoje. Um deles, José Amâncio Filho (“Meu Mano”), nascido ao apagar das luzes do século XIX, suas músicas ainda frequentam a boemia curaçaense.
Outro boêmio mais contemporâneo e sedutor era Zito Torres, inteligente e incorrigível.
Já escrevi noutra ocasião, em algum lugar, que Zito merece um monumento à cordialidade. Era gentil, humilde, atencioso, amigo, cordial. Zito fazia da vida um turbilhão de bondade e decência.
Havia um imóvel no chamado centro histórico de Curaçá, onde se lia no frontispício, talhadas com esmero, as palavras Luar do Sertão. Não sei se ainda estão lá o imóvel e as letras. Se não continuam lá, é porque extirparam um pouco da história do município, coisa comum nos dias de hoje, em qualquer lugar.
O nome deve ter sido inspirado no clássico Luar do Sertão, do maranhense Catulo da Paixão Cearense, que um colega meu dos tempos da faculdade insistia em dizer que era cearense. Nunca consegui convencê-lo de que Catulo era natural do Maranhão. Hoje acho que era gozação dele.
Composta em 1914, a música alcançou e já ultrapassou cem anos e ainda hoje continua sendo cantada por jovens e velhos.
Catulo sustentava ser o autor de Luar do Sertão, mas a história registra uma controvérsia: o autor seria João Pernambuco, contemporâneo de Catulo.
Em Curaçá vivi parte de minha fase de jovem irrequieto, às vezes afoito com as coisas da vida, outras tantas dedicadas à reflexão e à boêmia, nas horas vagas.
Agora vêm as lembranças que invadem os dias e me trazem a saudade do romantismo daquele tempo, diverso das vicissitudes de hoje. Coisas da idade.
O mundo daquela juventude era a própria juventude. A única droga possível era a bebida alcoólica vigiada pelos pais que nos repreendiam.
O parâmetro que balizava a nossa mocidade era o respeito aos mais velhos e o desejo de ser correto perante a sociedade. Os professores eram nossos melhores exemplos.
Os sonhos eram claros, claríssimos: crescer intelectualmente para a vida, ser irrepreensível em sociedade.
Mais: nunca perder de vista que “a felicidade é o devotamento a um sonho ou a um dever”, nas lições do pensador francês Ernest Renan (1823-1892).
Guardo nas páginas da lembrança alguns amigos daquele tempo. São tantos! Foram tantos!
Um deles, Wilson José Soares Ferreira. Muito jovem, lembro-o cantando “Último desejo”, de Noel Rosa e “Como vai você”, de Antonio Marcos, gravada por Roberto Carlos. Eu o admirava pela obediência que devotava aos seus pais, José Ferreira Só (Zé de Roque) e D. Elita Soares.
Zé de Roque e D. Elita constituíram uma das famílias mais admiráveis de Curaçá. Zé de Roque era simpático, solícito, carismático, compreensivo. D. Elisa era a sapiência, o exemplo de humildade.
O tempo passou. Passaram-se décadas.
Há algum tempo estive em Curaçá, em viagem de urgência, um tanto incógnito, porque a situação exigia e vi, intacta, a boemia em suas calçadas, nos bares por onde andei e, sobretudo, na firmeza de sua cultura.
Detive-me, por algum tempo, em frente à antiga SCAB (Sociedade Curaçaense, Artística e Beneficente) e Rua Coronel Pombinho. Lembranças caudalosas me impulsionaram de volta à mocidade. Revisitei, em memória, Astério Xavier, Adelson Xavier, Maria Roselita e o Curaçá Hotel.
Dei um abraço de saudade na memória de Edvaldo Araújo (amigo de constantes e contínuas farras) e Maria Almeida Araújo (D.Nenzinha), acumpliciei-me com Maria de Lourdes Lopes (Maria de Fortunato), recordei as intermináveis conversas com Herval Francisco Félix e deixei outros amigos para a próxima visita.
Do alto de minha insignificância, que não é coisa pouca, ninguém me viu transitando pelas ruas de Curaçá, ninguém me reconheceu.
Retirei-me de volta e trouxe comigo a saudade do tempo, dos amigos, do lugar.
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