Nos meus áureos tempos – já se vão algumas décadas – eu tinha um assistente que cuidava de minhas correspondências.
Certo dia, ao ver o nome do município do remetente, ele sapecou essa observação: “você recebe carta de cada lugar com nome esquisito!”.
Fiz-lhe ver que os lugares não são esquisitos. Esquisitos somos nós que achamos lugares, coisas e pessoas esquisitas e até fazemos observações esquisitas.
Mais de uma vez, em conversa com paulistas, eles acharam estranhos nomes como Abaré, Chorrochó, Curaçá, Canché, Uauá, Patamuté, Cumbe, etc.
Eles têm nomes muito parecidos com os nossos da Bahia e, no entanto, não acham estranhos: Avaré, Anhangabaú, Anhanguera, Mauá, Sumaré, Caraguatatuba, Cubatão, etc.
Outro dia encontrei, em minha rua, ao sair do trabalho, um senhor visivelmente fragilizado, fome estampada no rosto. Passou por mim, cambaleando, desviando-se dos tropeços, não me pediu nada.
Provoquei: tudo bem?
Ele respondeu: “Tudo bem, senhor”. E se foi, nada mais disse. Altivo, sereno, grande diante de si mesmo.
Deixar marcas é especialidade da pobreza. É só observar os maltrapilhos, desdentados, os miseráveis que nossa sociedade cruelmente constrói com a indiferença de sua ganância. e os joga debaixo dos pés.
Há marca mais cruel do que o rosto de uma pessoa faminta? Há marca mais dilacerante do que a dor de uma criatura pobre e desamparada?
Tenho sugerido à pobreza para escafeder-se de minha vida, baixar noutro terreiro, mas não tive sucesso nessa empreitada até agora. Cara de pau, ela se faz de desentendida, parece surda e faz questão de me aporrinhar cotidianamente.
Vira e mexe está me cutucando.
Quando tento me livrar da dita cuja, retiro-me sorrateiramente, mas ela me alcança na primeira esquina.
A miséria é cruel, crudelíssima. Persegue e maltrata.
Um pesquisador, mais de fofocas do que de coisas relevantes, manifestou desejo de conhecer meu possível diário, alegando curiosidade sobre minha vida.
Disse-lhe que não tenho diário nenhum, nunca me preocupei em anotar circunstâncias do meu viver, o que visivelmente o deixou desapontado.
Entendo que não tenho lições e experiências para servirem de modelo e, se as tivesse, não colocaria num diário frio, particularíssimo, solitário, passível de pesquisa, mas deixaria ao conhecer de todos.
Quanto a possíveis segredos, se os tivesse, seriam inconfessáveis ou não seriam segredos. Como diz a sabedoria mineira, “conversa com mais de dois é comício”.
Os confidentes de hoje podem não ser confiáveis amanhã.
As pessoas somente se interessam por detalhes da vida de um pé-rapado se ele for meliante, assim mesmo para espezinhá-lo, trucidá-lo, expor suas entranhas, desgraças e fraquezas diante de todos.
Se eu tivesse de contar alguma coisa não seria sobre minha vida. Seria sobre peregrinos, famintos, miseráveis, tristes, solitários e outros desafortunados mais que encontro no meu dia a dia.
Eles têm muito o que dizer. Ninguém os ouve.
Todavia, no recôndito de nosso ser, no âmago da existência, há sempre alguma coisa que não gostaríamos que outros conhecessem.
E se é assim, guarda-se, não se coloca em diário, senão acaba virando uma crônica como esta.
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