“Era a hora do enfrentamento. As esquerdas lutavam contra a ditadura e, preferentemente, lutavam entre si. A intolerância não tinha mais ideologia” (Zuenir Ventura, 1968: o ano que não terminou).
Os fatos são sobejamente conhecidos, estopim do endurecimento do regime militar de 1964 e pretexto para o advento do AI-5 (Ato Institucional número 5) que, dentre muitas atrocidades, sustentou o fechamento do Congresso Nacional, que ficou em recesso até outubro de 1969.
Em 02 de setembro de 1968, o novel deputado fluminense Márcio Moreira Alves (MDB) fez um pequeno discurso na chamada sessão pinga-fogo, da Câmara dos Deputados.
No diminuto discurso de aproximadamente três minutos, sem nenhuma importância, o deputado sugeriu o boicote às festas militares e que as moças se negassem a dançar com rapazes do Exército, porquanto servidores da ditadura.
O governo federal, à frente o general-presidente Arthur da Costa e Silva, sentiu-se ofendido e pediu ao Supremo Tribunal Federal para processar o deputado.
O STF submeteu o pedido de licença à Câmara dos Deputados, nos termos da legislação vigente na ocasião.
À época, funcionava assim: para processar um parlamentar, o STF pedia autorização à Casa Legislativa respectiva.
Naquele tempo, o STF não mandava no Congresso Nacional, como manda hoje, nem o Congresso Nacional ficava de cócoras diante do STF, como fica hoje.
A Câmara dos Deputados negou o pedido por 216 votos contrários à licença, sendo que 94 votos foram de deputados da Aliança Renovadora Nacional (ARENA), partido de sustentação do governo. Votaram favoravelmente à licença 141 deputados.
Estávamos sob o manto do bipartidarismo: ARENA (situação) e MDB (oposição), únicos partidos políticos permitidos pela ditadura.
O líder da Oposição na Câmara dos Deputados era o combativo Mário Covas, anos depois governador de São Paulo. O líder da ARENA era Geraldo Freire, de Minas Gerais.
A sessão terminou com “vivas” à democracia e canto do Hino Nacional. A rejeição da licença foi um ato de corajosa resistência do Poder Legislativo à ditadura militar.
Naquela quadra do tempo, a Câmara dos Deputados tinha vergonha e zelava por suas prerrogativas, embora em tempo de feroz ditadura.
Os deputados eram deputados mesmo e não se vendiam em troca de mensalão ou de emendas parlamentares.
Antes de ir a plenário, a Comissão de Constituição e Justiça havia aprovado o pedido de licença por 19 votos contra 12.
O presidente da Comissão, Djalma Marinho, do Rio Grande do Norte, que era a favor das prerrogativas dos deputados e contrário à licença, renunciou ao cargo, em protesto, e proferiu a famosa frase de Calderón de la Barca, dramaturgo e poeta espanhol (1600-1681):
– Ao rei, tudo; menos a honra.
Djalma Marinho ponderou, anos mais tarde: “Quando me opus a que se concedesse licença para processar um deputado, por palavras proferidas da tribuna, entendi que era a Câmara dos Deputados que se preservava”.
No contexto atual, a condenação do deputado Daniel Silveira (PTB-RJ) merece uma reflexão.
Ao analisar a condenação do deputado pelo Supremo Tribunal Federal, não se deve perder de vista que o STF agiu também com respaldo em decisão da Câmara dos Deputados que, consultada em 2021, concordou com a decretação da prisão do deputado determinada pelo ministro Alexandre de Moraes.
Como se vê, a Câmara dos Deputados abriu mão de suas prorrogativas, acovardou-se e jogou o deputado Daniel Silveira às feras.
Aqui não se discute se o deputado está certo ou errado, tampouco lança-se concordância sobre os destemperos que ele falou. Discute-se se sua condição de deputado, tal como prevê a Constituição, foi arranhada pelo STF. Discute-se se o STF invadiu esfera do Poder Legislativo.
O fato é que o STF agigantou seu corporativismo, espezinhou a lei e se vingou do deputado federal, condenando-o em tempo recorde e incompatível com a costumeira morosidade do STF.
Diante de tanta agilidade no julgamento do deputado Daniel Silveira, incomum na Corte Suprema, o STF precisa explicar por que há tantos processos contra políticos poderosos, os “donos do poder”, engavetados na Corte e sem previsão de julgamento.
De qualquer modo, culpar unicamente o STF pela condenação do deputado fluminense não parece guardar coerência com os fatos.
O Congresso Nacional, como um todo, fomenta o surgimento de figuras patéticas, a exemplo do senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), que se transformou ridiculamente numa espécie de contínuo e serviçal do Supremo Tribunal Federal e cuja principal atuação no Senado Federal tem sido protocolar petições nos balcões do STF.
O Congresso Nacional cultiva figuras asquerosas como o senador Renan Calheiros (MDB-AL), espécie caricata de “barão de Maracutaia” às avessas e colecionador de inquéritos criminais no STF por corrupção e, embora assim, é admirado por seus pares e pelo próprio STF, que “cozinha o galo” de tal forma a ponto de nunca pautar o julgamento dos processos que os envolve.
Por sua vez, a Câmara dos Deputados está de cócoras, o Brasil à beira do caos institucional e a intolerância se generalizou.
Lá, em 1968, o pequeno discurso de um inexpressivo deputado ocasionou o endurecimento da ditadura. Hoje, outro deputado gera crise semelhante, embora o tempo seja outro, não estamos sob ditadura e outras sejam as proporções dos fatos.
Curiosidade: ambos fluminenses e ambos deputados inexpressivos.
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