Sempre fui intransigente no que diz respeito à intromissão em assuntos pessoais.
Quero dizer, a privacidade do indivíduo é um bem inviolável e protegido por disposição constitucional. Ninguém tem o direito de escarafunchá-la. Isto vale pra todos, sem exceção.
Todavia, de quando em vez aparecem supostos pesquisadores, curiosos, bisbilhoteiros, fofoqueiros e outras figuras mais, todos ávidos para saber detalhes da vida dos outros.
O passado nada mais é do que a soma de muitos e constantes agoras e, neste contexto, há pessoas que se interessam em saber como éramos no passado, como somos hoje e até o que pretendemos ser no futuro. Sempre com uma pitada de maldade.
Tirante a maldade, nada há de estranho nisto. O diabo é acrescentar o sórdido, o asqueroso, a torpeza.
Levanto cedo, porque comumente passo todas as madrugadas acordado, conversando com a insônia. Chego cedo ao meu local de trabalho, chova ou faça sol.
O repórter também chegou cedo, conforme combinado. Queria saber o significado de uma frase que eu teria dito: “noventa por cento do que escrevo é mentira. Só dez por cento é invenção”.
Deixei-o desapontado de pronto. Disse-lhe que a frase não é minha, nunca foi minha e jamais será minha.
A frase é do poeta matogrossense Manoel de Barros e, conhecidíssima, consta em todas as publicações que falam da vida do escritor.
Devo tê-la citada nalgum lugar, embora contextualizada, sem nenhuma intenção de arranhar a autoria.
O repórter insistiu, questionou, titubeou: “mas você disse esta frase há pouco tempo, que eu sei, li, achei interessante”.
E daí? Ponderei que, se disse, foi tão-somente a título de citação, com o cuidado de declinar o nome do autor e se escrevi, o que também não lembro, tive igual cuidado de colocá-la entre aspas.
As citações são naturais, comuns, permitidas, desde que creditadas aos seus autores. É a técnica, é a regra, é a ética.
O repórter pretendia colocar uma cilada em meu caminho, espalhando-a no ventilador da irresponsabilidade.
Ele sabia que a frase não é minha, mas, talvez por falta do que fazer, mente vazia, talvez, queria publicar alguma matéria confusa, sabe-se lá onde, no mínimo polêmica, problemática, altamente discutível, fora do contexto necessário.
Não foi desta vez, entretanto. Nem será noutra.
O escritor Jorge Amado contava que quando Sônia Braga foi escolhida para viver a personagem Gabriela na televisão, foi-lhe apresentada na casa do Rio Vermelho, em Salvador. Ele não a conhecia, nunca tinha visto e, portanto, a escolha não tinha sido dele, mas dos responsáveis pela novela.
Reunidos todos, antes de Sonia Braga chegar, um repórter de São Paulo presente à reunião, maliciosamente portando uma revista na qual a atriz tinha posado, perguntou, maldoso: “por que você escolheu Sônia Braga?”.
Esperto, Jorge Amado percebeu a malandragem: “escolhi porque ela é minha amante”.
Instantes depois, a atriz chegava e Jorge foi logo dizendo: “muito prazer Sônia, somos amantes. Sabia?”
As maldades andam por aí, em tudo quanto é lugar. O que dá audiência em televisão, redes sociais, mídia em geral e permite venda de jornais é a vida privada dos outros, suas fraquezas, inclusive.
Então, a privacidade das pessoas muitas vezes é invadida, acintosa e desnecessariamente, extraindo dela o combustível para o sensacionalismo.
Até hoje não sei como alguém pode deliciar-se da miséria dos outros.
Chega a ser sádico valer-se de falhas, deslizes e até de fatos casuais, involuntários ou não, na vida de uma pessoa, para escancará-la diante de todos.
Em política e campanhas eleitorais, o negócio é escabroso. As redes sociais estão inundadas de comentários baseados em notícias truncadas, inventadas e distorcidas, de modo que apoiadores de um candidato querem sempre denegrir a imagem do adversário, encontrar picuinhas, jogar poeira no caminhar do outro.
O inverso é absolutamente verdadeiro.
O trilho por onde passa a condução da ética está avariado. Precisa de cuidados, de consertos.
Voltando ao repórter, educadamente convidei a raspar-se.
E ele educadamente raspou-se.
araujo-costa@uol.com.br