Confesso que nunca fui boêmio, propriamente.
Minhas incursões nas noites deveram-se aos arroubos da idade e, em muitas vezes, para acompanhar amigos que gostavam da noite e participar de suas conversas agradáveis, intermináveis, inesquecíveis.
Contudo, também confesso, muitas vezes apreciei a chegada da alvorada e “peguei o sol com a mão”, como dizia Luiz Gonzaga em seu Forró no escuro, ainda no tempo do candeeiro.
Quando não se sabia o que era brega – ou pelo menos – a gente não se preocupava com essas baboseiras, frequentemente amigos passavam a noite, ouvindo Quem mandou você errar e A vida é mesmo assim, com Claudia Barroso; Devolvi, Lama e Fracasso, de Núbia Lafayette; Doce amargura e Suave é a noite com Moacyr Franco; Tortura de amor, de Waldik Soriano e outras músicas da época que marcaram minha geração.
Nesse tempo surgiram as amizades – bons amigos, graças a Deus – e muitas dessas amizades perduram até hoje.
Todavia, muitos desses amigos já se foram, uns ainda jovens, outros já no entardecer da vida foram surpreendidos pela morte, essa inevitável visitante.
Tenho um amigo, já octogenário, que não via há anos, por uma série de razões, dentre elas um dos meus defeitos: sou relapso e desatencioso com os amigos, embora eles me entendam, exatamente por serem amigos.
Na correria de São Paulo, encontrei-o frágil, amparado por uma bengala, olhar humilde e expressão inocente, caminhando com dificuldade por uma avenida enorme, seca, barulhenta, entre passantes indiferentes.
Eu às voltas com a exiguidade do tempo e compromissos de agenda e ele, emocionado com o encontro, parecia um tanto desconexo, talvez pela aspereza da cidade grande.
Fiz-lhe algumas perguntas como é praxe nesses encontros casuais.
Humilde e reticente disse, sem completar o raciocínio: “Rapaz, me perdi, tem uma rua ali, aquela onde moro, você sabe, diabo, pareço velho…”. E apontava para um lado e para outro, braços levantados, gestos largos, raciocínio confuso, memória esburacada.
Fiquei preocupado. Minha emoção desabou.
O relógio me atrapalhando, confrontando-me com a necessidade de ser-lhe útil, solidário, a lembrança do passado e de nossa amizade a me cutucar.
Deixei-o nas imediações de sua casa e despedi-me mais frágil que ele, refletindo sobre sua situação de desamparo diante da certeza e das armadilhas da velhice.
Chorar nesses momentos é muito fácil.
Minha fortaleza e arrogância se desmoronaram naquele momento.
Depois, angustiado, fui relembrando nossas conversas de décadas atrás, a alegria dos encontros, o bate papo desinteressado, as músicas que ouvíamos em tempo de serestas.
Meu amigo está fragilizado, diminuído, carente diante da vida.
Confessou-me lhe terem escapado as esperanças.
Observei seu olhar vazio, semblante maltratado pelo tempo e pelo sofrimento.
Mas ele já sorriu muito. Sou testemunha. E o sorriso também deixa cicatrizes boas, inolvidáveis cicatrizes.
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