Em Curaçá, Maria de Fortunato agendava a vida.

“Viver é subir uma escada rolante pelo lado que desce” (Lya Luft, 1938-2021).

Maria de Lourdes Lopes (28/10/1919-18/01/1998), mestra em arquitetar generosas façanhas, incorporou uma delas em seu viver admirável.

Maria se fez conhecida, simultaneamente, através de dois nomes: Maria de Fortunato e Maria de Expedito. Fortunato Lopes, o pai; Expedito José de Bim, o esposo.

Todavia, quando instada a declinar seu nome, em ocasiões que a burocracia exigia, notava-se uma altivez exemplar ao dizer, com dignidade: “Maria de Lourdes Lopes, sua criada”.

Quando perguntados, os mais velhos costumavam dizer o nome próprio seguido da expressão “seu criado”, oralidade que ainda se usa em alguns rincões do interior do Brasil, para significar reverência e respeito ao interlocutor. É uma expressão respeitosa, educada, início de uma boa conversa.

Convivi muito próximo com Maria de Fortunato. Morei em sua casa em Curaçá que, numa quadra do tempo, ela a transformou num misto de pensão e residência. Seus hóspedes eram tratados como amigos e, de fato, acabavam caindo em seus encantos, tamanha a maneira cordial e maternal com que cuidava de todos.

Contudo, o que mais admirava em Maria de Expedito era uma de suas façanhas: demarcava, com sabedoria lapidar, tanto o território de sua liberdade quanto o de seus deveres. Sabia exercê-los com impressionante inquietude.

A liberdade retratava-se na maneira desenvolta com que traçava seu viver, com absoluta independência e externava com firmeza seus pontos de vista. E não negligenciava no cumprimento de seus deveres, que eram muitos, incessantes, necessários.

Outra façanha de Maria de Fortunato era o cuidado com a família. Educou as filhas, até arrostando dificuldades, mas deu-lhes os esteios para sustentarem vida honesta, correta, exemplar. Soube direcioná-las todas no caminho do bem e dos estudos, vendo-as graduadas e, na sequência, profissionais de destaque.

Maria agendava a vida, sabia agendar a vida. Mesmo subindo a escada rolante pelo lado que desce, Maria de Fortunato não permitiu que os degraus a empurrassem para baixo.

Não baixava a cabeça diante dos percalços rotineiros e inevitáveis da vida. Soube seguir em frente. E seguiu obstinadamente, humildemente, honrosamente.

Às vezes filosófica, outras tantas pensativa, mas sempre espirituosa. Maria era assim e mais do que isto: decidida e alegre, sempre alegre, muito alegre. Sabia agendar a vida, sabia driblar as ciladas do dia a dia com decência e desenvoltura.

Há aproximadas cinco décadas convivi com Maria de Expedito. Carrego em minha pequena e apoucada experiência, não obstante a passagem do tempo, uma lição que aprendi com ela: ser livre é não definir fronteiras para nossas palavras, mas é também entender a liberdade como limite para saber conviver com os demais que nos cercam.

Parece pouco, mas não é. A vida seria mesquinha e desditosa se, ao precisar conviver com os poderosos, tivéssemos o condão de tolher os espaços dos mais humildes. A humildade é o bálsamo do saber viver, a ciência para enxergar o caminho.

Os tropeços, quaisquer que sejam eles, nos dão lições de vida.

Nunca esqueci um de seus incentivos, quando meus sonhos turbilhonavam nas incertezas, como de resto, ainda hoje: “Meu filho, vá em frente”. Fui. Mas não sei se tenho conseguido enfrentar os tropeços da vida como ela conseguiu enfrentar com tanta dignidade.

Maria de Lourdes Lopes, Maria de Fortunato, Maria de Expedito. Aprendi muito com ela nesta vida de tropeços e quedas. Sinto falta de seu amparo, de seu abraço afável, de suas palavras, de sua impetuosidade de viver.

Expedido Bim e netos /Álbum de família

araujo-costa@uol.com.br

Post scriptum:

As fotos de Maria de Fortunato e de Expedido Bim são de álbum da família Bim. Embora isto não venha macular a essência do texto, parece que me foi dito uma vez que o nome correto é Espedito e não Expedito.

Uma consideração sobre “Em Curaçá, Maria de Fortunato agendava a vida.”

  1. Saudades de minha avó, uma das mulheres guerreiras dessa existência, obrigada ao autor que a descreveu exatamente como ela era, e todos que a conheceram ressalta a mesma descrição, ela merecia um livro ou até um filme ❤️

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