A autoridade na mão do imbecil

A ditadura corria solta. Período difícil. Tempo de repressão.

O general-presidente Emílio Garrastazu Médici, jeito de bonachão, mas essencialmente linha dura, já havia passado o comando da República para o também general Ernesto Geisel, mais ameno e menos linha dura. 

A situação política nacional, entretanto, ainda era a mesma do antecessor. 

A polícia paulista do governador indireto Paulo Egydio Martins (1928-2021), eleito pela Assembleia Legislativa, obedecia às ordens dos governos chamados revolucionários e vivia se engalfinhando com os estudantes, sempre rebeldes.

Polícia e estudantes viviam às turras, à semelhança de gato e cachorro.

São Paulo daqueles dias era um caldeirão político. Época das torturas, prisões arbitrárias, desaparecimento de políticos e militantes contrários ao regime e outras atrocidades mais.

Centro de Santo André, Rua General Glicério, bem no miolo da cidade, começo de noite quente e agitada. A polícia cercou um grupo de estudantes inofensivos que se dirigiam para suas escolas, depois de um dia de trabalho.

Eu estava lá, entre eles. Sobraçava um livro didático e um exemplar da Folha de S.Paulo.

Naquele tempo quem carregava um livro era suspeito. Quando a polícia abordava o sujeito, tomava o livro, revirava, folheava e fazia seguidas perguntas idiotas, como se livro fosse uma arma perigosíssima.

Era a paranoia da subversão.

Quem fosse flagrado com alguma publicação que fizesse qualquer referência a Karl Marx seria preso e interrogado, acusado de comunista e inimigo do Brasil.

O policial aproximou-se, arrogante:

– O que é isto debaixo do braço?

– Um livro, sabe o que é um livro?

Ele entendeu o deboche, virou uma fera.

– Está com gracinha? Quero saber o que tem dentro?

– Folhas, páginas, letras – respondi.

 A situação piorou.

-Está preso.

Instalou-se um tumulto ao redor e fomos todos para a delegacia. Não éramos meliantes, tampouco subversivos, nem agitadores. Éramos estudantes pobres, cavando um futuro melhor. Saíamos do trabalho direto para a escola, sem comer.

Ficamos todos numa sala, sem móveis, confinados, sentados no chão, conversando, aguardando. Só de pirraça, nos deixaram mofando por algumas horas.

O tempo parecia interminável. Finalmente, chegou o delegado, cara de bravo, jeito de imbecil e pinta de idiota, carregando autoridade pelas ventas.

– Estão dispensados. Retirem-se antes que me arrependa.

Ainda muito jovem, foi o primeiro caso de abuso de autoridade que vi. A partir daquele dia resolvi estudar Direito.

Hoje, calejado pelas lides forenses, ainda me deparo com situações semelhantes. E quem vira uma fera sou eu, quando vejo injustiças, leis mal aplicadas, policiais imbecis, juízes arrogantes e menosprezo a pessoas humildes.

O humilde pela sua própria condição já vive humilhado. Por que espezinhá-lo? 

Nesse tempo de luta, aprendi muito e construí uma teoria inquestionável, modéstia à parte: todo agente público arrogante é imbecil.

E a autoridade em mãos de imbecis é sempre um perigo.          

araujo-costa@uol.com.br

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