
“Talvez a velhice seja um naufrágio.” (Milton Hatoum, escritor amazonense)
Quando a ditadura militar corria solta, estudantes, escritores, jornalistas, intelectuais de toda ordem e um sem número de antagonistas do statu quo mantinham seus redutos de boemia, muitos dos quais ficaram famosos.
Intelectuais reunidos tergiversam e incomodam.
Estávamos, por óbvio, nos anos de chumbo, propriamente: governos Costa e Silva, Garrastazu Médici e parte do governo Geisel.
A ditadura, embora una, indivisível, teve períodos mais escabrosos que outros.
O temido Serviço Nacional de Informações (SNI) se infiltrava até em botequins e lá auscultava se havia ou não a presença de subversivos que pudessem incomodar o governo.
Lá, nesses redutos, se discutia e falava-se mal do governo, das pessoas do governo, dos amigos do governo e de todo mundo que não comungasse as mesmas ideias sustentadas naqueles ambientes.
De tanto beberem cerveja e rum, a direita os apelidou de “esquerda diurética”.
Essa esquerda – ou o que sobrou dela – quando alcançou o poder nos governos Lula da Silva e Dilma Rousseff, passou a ser chamada de “esquerda caviar”.
É a esquerda deslumbrada e elitista que adora lambuzar-se no dinheiro público e gosta de dizer que cuida dos pobres.
Quando fora do poder, a esquerda critica as mordomias, os exageros das mordomias. Quando chega lá, incorpora-as, acintosamente, ao seu cotidiano de glamour. Os exemplos pululam.
Mas esta é outra história e só faz parte desta crônica porque muitos dos meus amigos daquela época, que também contestavam, já morreram. Sobraram poucos, alguns, que estão por aí cavando a persistência da vida, tropeçando no caminho do tempo, ainda com força de sacudir a poeira.
A velhice chega, mas os sonhos, embora trôpegos, não vão embora. Ela se vem anunciando como uma brisa agradável e depois se vai abancando como uma tempestade. Em muitos casos chega a ser um naufrágio.
Com frequência, chegam notícias de amigos que se foram, alguns inesperadamente, porque não estavam doentes.
Um amigo, dentre os poucos que me restam, gozador e espirituoso, me provocou:
– Não se impressione. Sua vez vai chegar. Não tenha pressa.
Disse-lhe que não tenho pressa de cair nos braços da finitude.
De qualquer modo, embeveço-me de lembranças e vou dando seguidos pontapés nas notícias ruins, que são muitas e chegam aos borbotões.
Prefiro dar espaço às lembranças dos redutos boêmios contestatórios, quando nossos sonhos eram utópicos, ingenuamente utópicos.
É uma forma de achar que ainda irei longe, mesmo que seja uma forma duvidosa.
Como diz a liturgia católica no Prefácio dos mortos, aos que a certeza da morte entristece, a promessa da futura imortalidade consola, de modo que a vida não é tirada, mas transformada.
Devo terminar esta crônica incoerente e desconexa, lembrando que ainda há horizonte, alvorecer e esperança. E vontade de prosseguir na caminhada, apesar dos tropeços e da escuridão.
Como disse o filósofo idealista Hegel, “a coruja levanta voo com o crepúsculo”.
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