Quando somos públicos e notórios

O jornalista e escritor Jason Tércio conta a história.*

Tempo de ditadura militar. Carlinhos Oliveira, jornalista boêmio e notívago, conhecido por dez entre dez cariocas da Zona Sul, dirigia-se à vida noturna, quando foi abordado pela temida polícia política do general-presidente Emílio Garrastazu Médici.

– Documentos?

– Não tenho.

– Mas então o senhor não existe?

– Existo, sim. Sou público e notório.

Anos mais tarde, já nos estertores do governo do general-presidente João Batista Figueiredo, ex-chefe do Serviço Nacional de Informações (SNI), eu morava na Rua Brás Cubas, no centro de Santo André, ABC paulista.

Tempo de estridente efervescência política no ABC, berço de seguidas contestações contra o regime militar, estudantes às voltas com a polícia.

Costumava sair com os amigos à noite para jogar conversa fora e beber um pouco, quando podíamos beber. O dinheiro era curto.

Certa noite, saí sozinho e me abanquei num botequim meia boca da Rua Bernardino de Campos, nas imediações da Estação Ferroviária.

Sentei-me em volta ao balcão, fazendo hora, enrolando para não esvaziar o copo, porque o bolso não correspondia à minha vontade.

Notei um rapaz que me olhava de soslaio, cara de milico disfarçado. Só podia ser do SNI, pensei. Levantava-se de vez em quando, dirigia-se até à porta do bar e voltava em seguida para o mesmo lugar, sempre ao meu redor.

Comecei a ficar incomodado e já ia me retirando, quando o rapaz me cumprimentou, solícito.

– Estava lhe reconhecendo, mas não quis lhe abordar antes. Você estuda no Colégio Santo André?

Confirmei. Mas a palavra abordar me fez desconfiado, linguagem de polícia. Puxou conversa:

– Você gosta de falar de política, criticar o governo, parece revoltado.

Continuou:

– Também estudava no Santo André, mas mudei de escola e hoje estou fazendo “outro troço”.

– Que troço? eu quis saber.

– Fazendo um curso pra investigador.    

Acho que ele estava fazendo um teste para o SNI, mas não podia falar.

Saí do botequim aliviado. Eu já havia passado um perrengue com a polícia do governador arenista Laudo Natel, que achava que todo estudante era subversivo.

Mas, afinal, eu era público e notório.

* O escritor Jason Tércio conta o caso de Carlinhos Oliveira no livro O homem na varanda do Antonio’s, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2004.

araujo-costa@uol.com.br

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