
Todos nós temos lembranças da infância, da juventude ingênua, dos primeiros anos, do despertar para a vida.
Tenho muitas, embora esparsas, às vezes opacas, em razão do caminho percorrido.
O tempo apagou algumas, a memória deixou escapar outras, os tropeços do caminhar deixou outras tantas pela estrada.
O sofrimento, as angústias e as incertezas do caminho se encarregaram de firmar muitas dessas lembranças, transformando-as em saudade.
Como parte dessas lembranças, guardo, com carinho, o nome da primeira professora: Graziela Ferreira da Silva (09/06/1930-30/07/2011). Não somente o nome, mas a presença inapagável de sua vida correta, prestativa, admirável.
As datas de nascimento e morte de Graziela me foram passadas generosamente por sua sobrinha Dorinha Souza, a quem recorri há algum tempo, porque não tive o cuidado de guardá-las, em razão de desleixo, falta de atenção, ingratidão.
Difícil entender o tempo, a vida, a morte. Difícil entender o adeus das boas pessoas, para sempre.
Dorinha Souza é filha do também professor Theófilo Ferreira que, a exemplo de Graziela, dedicou parte de sua vida ao ensino e abrir caminhos para o andar da juventude.
Graziela Ferreira da Silva foi professora primária na Fazenda Bom Jardim, nos domínios do distrito curaçaense de Patamuté.
Ensinou-me a ler, escrever, formar as primeiras palavras escritas, engendrar frases, conhecer os primeiros livros de leitura.
Assim Graziela fez com muitos de minha geração.
Como esquecê-la, ensinando-me a escrever meu nome, caligrafia firme, segura, exemplar?
Como esquecer a paciência, o sorriso puro, o cuidado, o respeito com seus alunos?
Como esquecer a preocupação, o coração generoso, a merenda que ela me dava, muitas vezes de sua cozinha, em razão da precariedade do lugar e da dificuldade de acesso à alimentação diária e necessária, que minha mãe nem sempre tinha?
A escola da Fazenda Bom Jardim era mantida sob a responsabilidade de um senhor sonhador, que vislumbrava o futuro promissor para as crianças pobres do sertão naquela quadra do tempo: Antonio Ferreira Dantas Paixão, comerciante e político.
A vida de Antonio Paixão merece um livro de reconhecimento por tudo que fez em benefício daquela gente de Patamuté e arredores.
Devo-lhe gratidão e tenho saudade. Ele e Graziela foram sustentáculos dos sonhos de toda uma geração.
Faziam do ensino o esteio para que todos nós vislumbrássemos um mundo diferente daquele em que vivíamos.
Alguns conseguiram, outros não.
Eu ainda vivo a peregrinar por caminhos ásperos e difíceis, mas necessários. Seguir adiante é preciso, inobstante os tropeços da idade septuagenária.
Em São Paulo, colhi numa folha de papel que guardo comigo, a assinatura de Graziela, já na velhice, beirando os oitenta anos, mãos trêmulas e caneta titubeante entre os dedos.
Isto se deu em maio de 2009. Confesso que me emocionei ao lembrar seus ensinamentos, acomodando o lápis em minha mão, para dali nascerem as primeiras palavras escritas.
Tempo de infância na Fazenda Bom Jardim, tempo dos primeiros sonhos, tempo de idade tenra em busca de amparo.
Assim como a vida dá alegria e tristeza, também mostra razões para refletir, abandonar a arrogância, recolher-se à pequenez, ajoelhar-se diante da humildade e, algumas vezes, chorar.
Graziela mudou-se para São Paulo e por aqui viveu algumas décadas, sempre rodeadas de parentes e amigos. Os mais próximos carinhosamente a chamavam Dadá.
Um dos maiores e inexplicáveis vazios que senti na vida, até aqui, aconteceu no dia do seu enterro em Vila Formosa, em São Paulo. Uma sensação de terrível desamparo.
Parecia que sua despedida em direção ao túmulo estava arrancando alguma coisa de mim, mas deixando o que de mais precioso ela me passou naqueles dias de infância: o conhecimento, a gratidão e o gosto pelo estudo.
araujo-costa@uol.com.br