Fragmentos de Chorrochó

“Para enxergar longe é preciso despregar os olhos de si mesmo” (Nietzsche, 1844-1900, O crepúsculo dos ídolos).

Em tempo de cartões de crédito, bancos digitais e outros emaranhados mais, que os burocratas da economia mundial criaram, chega a ser tarefa difícil explicar para pessoas dos grandes centros urbanos, que ainda há comerciantes que vendem sem exigir nada assinado do devedor, em confiança no freguês. 

Por este Brasil de meu Deus, que os políticos ainda não conseguiram acabar, faz-se negócio apalavrado, sim senhor.

A garantia de pagamento da dívida é a palavra do freguês, que o comerciante acredita sem pestanejar. E só, somente só.

Esse costume ainda faz parte da cultura nordestina, principalmente, em qualquer rincão e em quaisquer quebradas do sertão.

Meu irmão, que mora lá no Riacho da Várzea, nas caatingas curaçaenses de Patamuté, me contou que estava precisando de uma bateria para sua camioneta, que há dias estava em baixo de uma árvore, por falta de dinheiro para o conserto necessário.

O Riacho da Várzea, para quem não é daquele sertão, é um afluente temporário que serpenteia entre cactos e terra da caatinga esturricada até desembocar no Rio São Francisco.

Sem dinheiro – e acanhado – procurou, meio sem jeito, Manoel Gomes de Menezes, da Mercearia Menezes, em Chorrochó.

Não sei se a mercearia, que evoluiu para mercado, ainda carrega esse nome, mas o certo é que à época vendia de tudo ou quase tudo.

Nezinho de Hermógenes, como o conhecemos desde o principiar de sua atividade comercial, ainda muito jovem, no início da década de 1970, é um senhor decente, honesto, trabalhador, bom caráter, prestativo e humilde.

Admiravelmente humilde.                                                            

Acanhado homem da caatinga, meu irmão levou o assunto da bateria ao ilustre comerciante Nezinho que, de pronto, lhe propôs vender uma bateria nova, como se diz por lá, novinha em folha.

Encostado ao balcão, o interessado lhe disse que não tinha dinheiro. A rigor, estava ali para consultar o preço, coisa e tal e quando pudesse voltaria para comprá-la ou encomendar.

Convenhamos, para um aposentado da caatinga, que vive em meio aos cactos e debaixo do sol escaldante, tratava-se de valor razoável, que ele não dispunha, beirando mesmo a impossibilidade.

Nezinho lhe disse, de chofre: “Pode levar, depois você me paga”.

Assim foi feito. O leitor não imagina, para o sertanejo necessitado, o que significa ouvir uma expressão dessas, num momento de dificuldade extrema: “Pode levar, depois você me paga”.

Em última análise, significa carregar consigo dupla gratidão: tanto pelo crédito concedido quanto pela consideração. O sertanejo preza mais as amizades do que as relações de negócios.

É gratidão que o caatingueiro leva para o túmulo.

O cronista às vezes se perde e se acha ao mesmo tempo. Mas continua no caminho, andando em direção ao tempo, tropeçando nas vicissitudes e contando histórias que colheu nas esquinas da vida.

Este assunto vem a propósito de uma conversa que este escrevinhador travou com um amigo sobre o clima geral de desconfiança por que todos nós passamos nestes tempos modernos.

Ninguém confia em ninguém.

Nas metrópoles, até o aceno e o cumprimento de um desconhecido nos faz recuar, desconfiados.

Não sei se meu irmão já pagou o valor da bateria para o atencioso comerciante de Chorrochó, ou se continua na caderneta dos fiados de Nezinho de Hermógenes, pendurada, ao modo antigo.

Nezinho é uma daquelas pessoas de caráter irrepreensível, que “desprega os olhos de si mesmo” e que encontramos na vida e nos pequenos e breves encontros que se agigantam.

araujo-costa@uol.com.br

Uma consideração sobre “Fragmentos de Chorrochó”

  1. ilustre Drº Valter, como vai? agradeço suas palavras dirigidas ao meu pai MANOEL GOMES DE MENEZES, sou suspeito em falar, mas para mim, o mesmo é a essência do homem de Chorrochó – BA, no caráter, reputação e de palavra;
    Como comerciante/empresário desde 1969( nome fantasia “Supermercado 3 irmãos), no início com meia dúzia de garrafas e apenas 17 anos, com a 4ª série, teve apoio meus avós paternos com a venda de 2 cabeças de gado, daí formou os 3 filhos, 2 advogados, e 1 administradora de empresa, sendo um pai presente até hoje em qualquer dificuldade que um ente esteja precisando.
    Por final, estou tentando convencê-lo a informatizar os seus comércios, mas a caderneta ainda é sua preferência, na minha humilde opinião os grandes comerciantes que esta terra já produziu foram Antônio Pacheco de Menezes, Amado Machado, Hermógenes Gomes de Menezes, e acredito que MANOEL GOMES DE MENEZES, também merece o seu espeço.
    Abraços MANOEL GOMES DE MENEZES JUNIOR.

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